sábado, 6 de março de 2010

Às esculturas

Abro a caixa antiga de biscoitos onde guardo lembranças, algumas escritas, e permito trair-me, buscando respostas para tudo onde não havia perguntas. Deparei-me comigo vagando pela nostalgia soturna de escolhas que não fiz, pois às que me permiti não mais são, tornaram-se quem sou. Se buscava uma carta antes da outra, se queria mudar as coisas, a ordem dos acontecimentos, não poderia despejar minha felicidade numa mesa pequena de madeira com minha vida petrificada sobre uma toalha cigana. Escrevi pra ele dizendo que revirei alguns cômodos da casa, e do tempo, e acabei por lembrar o que nunca tinha sentido falta. Besteira, não devia tê-lo feito, me senti ridícula, porque só as egoístas proclamam derrotado o passado. Novidade seria reverenciar os que se aproximam.




Também procurei na infância o ritual que minha avó costumava realizar durante os festejos de casamento na cidade onde nasci. Fazia sempre frio naqueles tempos e nossas tendas armadas nos bosques da região nos protegiam dos ventos gelados da floresta. Quando homem e mulher decidiam se casar, os noivos eram chamados para uma conversa íntima, mas separadamente, primeiro ele – depois ela. Vovó tirava da prateleira três pequenas esculturas e as expunha numa pequena mesa de madeira. Em cada uma delas estavam desenhados um homem e uma mulher, a sugerir que eram amantes, em três momentos distintos: a beijar, a abraçar e a fazer amor. “Coloque na ordem de importância, sob seu julgamento.” Caso a sequência escolhida pelo noivo não fosse a mesma apontada pela noiva, o casamento não saía. Seria preciso outro ano de espera.




Não foram poucas as vezes que sonhei com esse dia, essa apreensão inexplicável do amor, a aflição pelo inesperado. E achava curiosa a forma sob a qual minha família enxergava esses sentimentos. Lançar a sorte das pessoas que se amam em formas esculpidas em barro ou pedra?Sempre respeitei a tradição, que existe há mais de quinhentos anos, mas hoje sinto que não é bem assim, que pode-se haver amor fruto da sorte. Ou das coincidências, casos elas existam. De fato, há quem acredite nos encontros, outros em topadas ou mesmo tropeços, outros preferem caminhar sem sair do lugar, mas a queda de quem fica é mais dolorosa da de quem parte. Tudo está para movimentos, como o paradoxo da intimidade, compreendido em três estatuetas, pois o que não é adorar esculturas, senão a reverência à solidão de concretos.




Pela manhã levanto e vou direto ao computador. Preparo o chá, esvazio minha caixa de correspondências eletrônicas – quem dera se pudesse apagar também as afetivas, talvez porque não há. Prendo o cabelo e coloco os óculos embaçados por causa da fumaça quente que sai da caneca, procurando um lugar bonito para conhecer, mas distante, porque a mim já sei o suficiente para querer ir embora. Ainda não descobri como debandar-me. Acho que virei uma escultura de mim mesma.




Mas é o que faço agora. Não procuro mais nele algum motivo para não continuar. Não quero e ponto. Busco em mim o motivo da fuga, porque escapar ainda é preciso, sempre será, portanto mais importante de saber o que se está procurando é saber do que se tem medo. São dois rumos em direção ao mesmo destino. É necessário debandar-se de si para entender que o beijo e o sexo de nada valem sem o abraço de quem ama. Não sou esculpida pela tradição. A minha ordem é outro ano que começa: outra vida.