segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Monólogo das letras

Advirto o tempo com palavras esvoaçadas
Traças rodopiando o catavento
A cada novo tormento
Cato vozes despedaçadas

Sirvo e sucumbo aos travessões
Viro vírgulas e engulo tremas
Interrogo a culpa das exclamações
E de dois pontos faço algemas

Enfeito frases sem vida
Varo às reticências da morte
Garfo a vogal desprevenida
Como a consoante sem sorte


Ponto

Abro aspas em linhas tortas:
Parágrafos do tempo
Sem espaço

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Desamparo e descaminho

Hoje o amor apareceu sem bater à porta
e quando pensei que estava morta
outras batidas violentaram meu coração

O suor da testa salgou a fresta
Tua boca de paixão
E ouvi a mais louca seresta
quando a noite foi clarão

Descaminho no teu rumo
E desarrumo o coração

Desisto de desistir:

- Espero

domingo, 8 de novembro de 2009

As músicas do meu coração

Vou desfilando no meu ritmo, cadenciado e medido. Contando os passos como ponteiros do relógio, faço daí, do meu tempo, a minha bússola. Imprimo a velocidade que quero, sou dona de mim e dos meus movimentos, arregaço meus medos e cuspo pra fora, sem pontaria, a culpa que me ronda o corpo.

Ouço a mesma música tantas vezes que parece que são ínúmeras canções com a mesma melodia e ritmo. Mas só depois fui entender, e achei graça, que não são as músicas que se repetem a meu mando, e sim outras Carmens que ouvem a mesma canção. Como se meu meus desejos fossem uma roleta-russa do amor, por isso percebi que a morte durante a brincadeira, é apenas uma mensagem – e não o meio. Morrer de amor. Quantas vezes já fui enterrada em meu próprio coração, e mesmo assim, sobrevivo, porque coração partido sempre bate mais forte: há de se trabalhar em dobro para que o sangue alcance o passado e eu possa repetir a música que me faz lembrar de você.

Foi a última noite que passamos juntos. Você com seu jeito despretensiosamente ordinário, um sorriso pedante, quase agressivo, e eu não pude me desvencilhar das minhas amigas a tempo de desviar o olhar, porque queria que você pensasse que eu, e não todos que lá estavam, não tivesse percebido sua presença. Sei que você estava ali só por minha causa, não haveria outro motivo, lá percebi, mas não sei como você tem o dom de me irritar e me prender a atenção. Ao cumprimentar meus amigos, eu sublinhava com meus olhos cada movimento seu. E tiramos fotos juntos, com todos e sem ninguém, e à medida que se aproximava a hora de ir embora, chegava o momento da conversa movida ao pilequinho que nós já sabemos que sempre me trai a razão.

Descemos para o primeiro andar do bar para fumar. Engraçado, porque você parou de fumar e eu nunca comecei. A desculpa serviu para os dois e, mais engraçado ainda, era que apenas um de nós que estava sendo seduzido, mas até hoje não descobrimos – como nunca descobriremos. Falamos dos amores mal resolvidos, dos resolvidos que deram errado, dos que deram certo e dos que nunca deram, mas, quem sabe, sempre podem acontecer, e aquela conversa toda de quem esteve e não está mais. Seu riso nervoso e fala atrapalhada, engolindo consoantes e enaltecendo as vogais, embalado pelo ritmo da cachaça e da sua lábia, ambas envelhecidas, fui me deixando levar, quase um suicídio, quase uma roleta-russa: foram tantas músicas que ouvia dentro de mim enquanto não compreendia suas frases entorpecidas pelo álcool e distorcidas pela razão.

Sabia que seria bom o beijo, como o entrelaçar das pernas, dos braços, dos fios de cabelo que deixaria no seu travesseiro, quando fosse tomar banho no seu banheiro, reconheceria os quadros da sala, estranharia o sofá novo, a mesa que nunca esteve ali, das fotografias que você escondeu, mas não jogou fora. Também procurei pela casa os pedaços do meu coração, de maneira que tropecei no tapete onde me entreguei pela primeira vez a você. Sorri sem que você percebesse, porque não foram poucas as vezes que fui acordada no meio da noite com seu amor na língua, seu carinho da mão e seu suor me empapuçando toda – e como era bom.

Acordei cedo e fiquei olhando seu repouso. Decorei o ritmo da sua respiração, observando seu ventre. Passei a mão no seu peito com minha unhas, que você tanto gostava. Uma única lágrima que permiti cair do rosto salgou e purificou aquela manhã. Que saudade...

Depois do carinho me vesti e fui embora. Desci, e saí caminhando pela rua, pensando no amor que já tivemos e na paixão que não morrerá nunca. Fui desfilando no meu ritmo, assim, cadenciado e desmedido, ignorando meus passos e meus destinos. Acabei por fazer do tempo que passamos ponteiros de um relógio quebrado: uma relíquia. Foi aí que cuspi sem pontaria a noite devorada pelo coração. Mas só a metade dela. A música se repetiu, mas eu nunca mais seria a mesma.

domingo, 1 de novembro de 2009

Um beijo roubado

Bebi a primeira taça e senti sua presença pela gargalhada alta, já devia estar bêbado. Depois de alguns longos goles, quase engolindo o orgulho, caminhei na direção oposta de onde ele estava, propositalmente, para que quando chegasse nos fundos do salão, pudesse ver pelo espelho seu reflexo. Passei entre as pessoas, pedi licença com educação, enquanto me preocupava em ficar logo embriagada, devolvendo às bandejas os cristais vazios, e pinçando os cheios, pois assim me livraria dos olhares imaginários de quem reprovava minha presença. Perdi de vista alguns sentidos, depois de perdê-lo na pista de dança. E aí fui eu quem começou a dançar, quase esquecendo o motivo de minha ida à festa, esquecendo de quem era a despedida. Eu já tinha ido embora mas meu corpo continuava rebolando a todo vapor, intensamente, como tudo que vivemos antes e depois de nos conhecermos. Vivíamos sempre nos despedindo.

Tão breve quanto um beijo roubado, um intervalo entre dois suspiros. É mais essa peça que me prega o destino. Não acreditei quando recebi a notícia de que ele iria embora de vez. Tudo bem, já havíamos discutido isso antes, nos tempos onde tudo fica no futuro, nos momentos onde nada ficava pra trás. Reencontrá-lo, eu sei, não poderia me fazer bem, seria mexer em ferida antiga, fechada por fora, mas aberta por dentro, e que se encerra nas lágrimas que percorrem, agora, o curso da saudade. Antes o desvio da tristeza me trucidava a fogo baixo. Me sentia cozida lentamente pela ansiedade que me sufocava inteira, acho que por isso que não conseguia dormir mais. Já não sei se a noite consegue me acompanhar, porque meu passo largo não me faz abraçar o mundo com as pernas. Coincidentemente, quanto mais perto chegava a hora de revê-lo, aumentava a vontade de nunca mais sentir essa culpa, que me consome com toda a razão. No entanto, é engraçado como esse lapso conflitante dura apenas os segundos que demoro na frente do espelho, enquanto passo lápis nos olhos, delineando cuidadosamente as pálpebras, antes do toque final. Ele adora meus cílios e eu adoro quando ele diz isso e repete como se fosse a primeira vez.

Apesar dele nunca ter reparado nas minhas mãos, ainda assim, sei que é coisa de cigana, como dizia sempre minha avó, fui ao salão correndo. Não havia tempo a perder. Não sei se as outras pessoas concordariam comigo, mas acho que as unhas dizem muita coisa. Não é só a cor que se escolhe, mas quando e porquê. A energia das mãos está nas linhas das palmas, mas é das unhas que nasce a luz que nos reflete nos olhos. Na escuridão da ansiedade, da minha ansiedade de viver tudo, e depois o meu arrependimento de não tê-lo. Como se houvesse uma conexão. E ele nunca, nunca, percebeu isso. Jamais soube que eu me vestia só pra ele. Mas sempre entendia quando não estava mais vestida. Pra ele.

Arrumada e perfumada fui ao lugar da despedida. Entrei rapidamente, olhei para um lado, para o outro, procurei algum rosto conhecido. Encontrei feições que não me eram estranhas, mas todos eram estranhos ali, na medida em que me questionava, ou melhor, me xingava em pensamento, que besteira e desperdício de tempo em me maquiar e fazer unha, porque ainda me enganava, me iludia, e ainda mais toda essa conversa de menina, que a unha é luz da mão. Acho que a mulher quer ficar bonita pra ela mesma e eu estava linda! Linda, de verdade. Um arraso, não ia pra ter pra ninguém, principalmente praquela ex-atual.

Foi quando me puxou pela mão um homem que nunca tinha visto na vida. Quase me machucou, tamanha a força colocada no gesto. Era bonito, mas não tive tempo de olhar uma segunda vez, porque já me tinha sussurrado ao pé do ouvido alguma coisa. Gostei da atitude, mas, poxa, apesar da forma quase truculenta, percebi que foi por nervosismo, e não estupidez, talvez por isso não o tenha reprovado logo de cara, mas o movimento para se aproximar de mim foi de homem. Quando reparei ao redor, vi que ele, não o que me puxou pelas mãos, mas o que nunca tinha reparado nelas, e sim nos meus cílios, me observava do bar. Me encarava com um ar de conquistador, tinha uma certeza de si, que mais parecia um predador intimidando sua presa pouco antes do abate. Mas no rebanho da cabeça dele, que ironia, haveria de ter mais chifres e coices do que filés ou outros cortes. O rapaz do puxão dançava ao meu lado e, de novo, me puxou, mas dessa vez, foi delicado e me sorriu com firmeza, mas bem mais gentil.

Quando o outro percebeu (isso, sim, ele percebia) que a roda viva ia rodar, caminhou na minha direção. Apertou o passo, mas quem anda pra frente atrás do passado acaba tropeçando nas próprias pernas. E antes que o escorregão o fizesse cair no ridículo, fui tomada pelos braços pelo homem desconhecido do sussurro, que me beijou antes que o outro me alcançasse, antes mesmo que eu pudesse piscar os olhos. Aí percebi que já tinha me despedido do passado fazia tempo. E que o presente é sempre breve. Tão breve quanto um beijo roubado.