domingo, 8 de novembro de 2009

As músicas do meu coração

Vou desfilando no meu ritmo, cadenciado e medido. Contando os passos como ponteiros do relógio, faço daí, do meu tempo, a minha bússola. Imprimo a velocidade que quero, sou dona de mim e dos meus movimentos, arregaço meus medos e cuspo pra fora, sem pontaria, a culpa que me ronda o corpo.

Ouço a mesma música tantas vezes que parece que são ínúmeras canções com a mesma melodia e ritmo. Mas só depois fui entender, e achei graça, que não são as músicas que se repetem a meu mando, e sim outras Carmens que ouvem a mesma canção. Como se meu meus desejos fossem uma roleta-russa do amor, por isso percebi que a morte durante a brincadeira, é apenas uma mensagem – e não o meio. Morrer de amor. Quantas vezes já fui enterrada em meu próprio coração, e mesmo assim, sobrevivo, porque coração partido sempre bate mais forte: há de se trabalhar em dobro para que o sangue alcance o passado e eu possa repetir a música que me faz lembrar de você.

Foi a última noite que passamos juntos. Você com seu jeito despretensiosamente ordinário, um sorriso pedante, quase agressivo, e eu não pude me desvencilhar das minhas amigas a tempo de desviar o olhar, porque queria que você pensasse que eu, e não todos que lá estavam, não tivesse percebido sua presença. Sei que você estava ali só por minha causa, não haveria outro motivo, lá percebi, mas não sei como você tem o dom de me irritar e me prender a atenção. Ao cumprimentar meus amigos, eu sublinhava com meus olhos cada movimento seu. E tiramos fotos juntos, com todos e sem ninguém, e à medida que se aproximava a hora de ir embora, chegava o momento da conversa movida ao pilequinho que nós já sabemos que sempre me trai a razão.

Descemos para o primeiro andar do bar para fumar. Engraçado, porque você parou de fumar e eu nunca comecei. A desculpa serviu para os dois e, mais engraçado ainda, era que apenas um de nós que estava sendo seduzido, mas até hoje não descobrimos – como nunca descobriremos. Falamos dos amores mal resolvidos, dos resolvidos que deram errado, dos que deram certo e dos que nunca deram, mas, quem sabe, sempre podem acontecer, e aquela conversa toda de quem esteve e não está mais. Seu riso nervoso e fala atrapalhada, engolindo consoantes e enaltecendo as vogais, embalado pelo ritmo da cachaça e da sua lábia, ambas envelhecidas, fui me deixando levar, quase um suicídio, quase uma roleta-russa: foram tantas músicas que ouvia dentro de mim enquanto não compreendia suas frases entorpecidas pelo álcool e distorcidas pela razão.

Sabia que seria bom o beijo, como o entrelaçar das pernas, dos braços, dos fios de cabelo que deixaria no seu travesseiro, quando fosse tomar banho no seu banheiro, reconheceria os quadros da sala, estranharia o sofá novo, a mesa que nunca esteve ali, das fotografias que você escondeu, mas não jogou fora. Também procurei pela casa os pedaços do meu coração, de maneira que tropecei no tapete onde me entreguei pela primeira vez a você. Sorri sem que você percebesse, porque não foram poucas as vezes que fui acordada no meio da noite com seu amor na língua, seu carinho da mão e seu suor me empapuçando toda – e como era bom.

Acordei cedo e fiquei olhando seu repouso. Decorei o ritmo da sua respiração, observando seu ventre. Passei a mão no seu peito com minha unhas, que você tanto gostava. Uma única lágrima que permiti cair do rosto salgou e purificou aquela manhã. Que saudade...

Depois do carinho me vesti e fui embora. Desci, e saí caminhando pela rua, pensando no amor que já tivemos e na paixão que não morrerá nunca. Fui desfilando no meu ritmo, assim, cadenciado e desmedido, ignorando meus passos e meus destinos. Acabei por fazer do tempo que passamos ponteiros de um relógio quebrado: uma relíquia. Foi aí que cuspi sem pontaria a noite devorada pelo coração. Mas só a metade dela. A música se repetiu, mas eu nunca mais seria a mesma.

6 comentários:

  1. Carmem,

    Você é a Dolores Duran da blogosfera!

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  2. "Seu riso nervoso e fala atrapalhada, engolindo consoantes e enaltecendo as vogais, embalado pelo ritmo da cachaça e da sua lábia, ambas envelhecidas, fui me deixando levar, quase um suicídio, quase uma roleta-russa: foram tantas músicas que ouvia dentro de mim(...)"

    Aqui você traduziu bem a alma masculina e mostrou que as mulheres sabem de si, além de saberem bem, por mais que não pareça, as cartas marcadas que são os homens...

    Muito bom. Beijos!

    Bruno Quintella

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  3. Que belo texto, amiga! Admiro sua coragem e sua forma de expressá-la.

    Saudades!

    Beijoca

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  4. Não foi sem lágrimas nos olhos que eu cheguei ao final desse texto.

    Algumas saudades deveriam ser esquecidas, Carmen... algumas músicas doem na alma...

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  5. "Ouço a mesma música tantas vezes que parece que são ínúmeras canções com a mesma melodia e ritmo. Mas só depois fui entender, e achei graça, que não são as músicas que se repetem a meu mando, e sim outras Carmens que ouvem a mesma canção."
    lindo!

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