quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Estocolmo


Quando morro é quando desejo ser morta. Por ti. Sobrevivo em carne-viva, insurgida pelos prazeres da despedida. E toda vez que bates a porta me deixas trancada dentro de mim.
Corto a garganta com um trago mais forte. E me procuro nas marcas que deixaste em meu corpo com teus dentes.Também deixo que tua saliva percorra a minha pele para eternizar teus beijos apressados. Sorvo teus líquidos e me perco de vez. Um furacão. E sorrio ao perceber cortes novos em meus joelhos, queimaduras de um carpete voador.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Profecia


saudade
chão
fogão
saliva
toda de amor
todas direção
que ainda não sabia

sábado, 29 de setembro de 2012

Nove da manhã


Relógios paralisados. Pulso e parede. O telefone respira alto, mas não fala. Sua voz escrita, sua voz muda. Malas prontas no chão da sala e você não apareceu. Você não apareceu e as malas estão prontas. 
Eu estava preparada, mas você, não.
Você não me conhece. 
A cama é sua sala de aula, você pensa que ensina, eu finjo que aprendo. Não há lições em nossa história. “Atrasei”. Seu verbo e tempo preferidos...
Tudo que vivemos até aqui foi uma loucura. Você me deixa maluca, e isso não é bom, sabe? 
Já não tem mais graça essa brincadeira de adolescência tardia. Não posso mais.
Malas desfeitas.
Roupas intactas.
Armários entreabertos: seu beijo não tem mais gosto de mim. 

domingo, 8 de julho de 2012

Girassol


Aconteceu de novo. O rasgo da lembrança no ar. Pétalas de mim. 

O dia em que você me deu a mão. Você não me conhecia, mas nem eu a mim. Soube lá. Quando você falou de Pessoa como se fosse seu melhor amigo. Amar é pensar, lembrei. Eu também não te conhecia e você me apresentou a Bernardo Soares. Você apareceu naquela noite quando eu não esperava nada. Quando pude olhar para mim e ter certeza que, sim, eu me permito. Eu me entrego. O calor da constatação sublime: quero amar de novo.

Não me importava com seus atrasos, justificados e perdoados por causa do seu sorriso lento. Também não me irritava com seu falatório bêbado e melancólico. Mas gostava de entrar no táxi e você saber de cor meu endereço. E quando me vi feliz, tive medo. Um medo que nunca tive antes, um temor de que poderia ficar vulnerável outra vez, que poderia, de novo, me ferir. Você me vem com Pessoa... A culpa é toda sua. Mesmo que eu seja punida por mim mesma. Porque seu olhar é nítido como um girassol. Ai, que raiva de vocês dois!

Vai acontecer sempre. Você aqui ao meu lado, segurando a minha mão, passando seu polegar sobre as costas da minha mão, dizendo que a minha mão é maior que a sua. Que seu uísque é caubói e que meu beijo é bom. Que gosta do que escrevo e como escrevo. Sem saber nunca que a sua língua se torna minha palavra e que a sua palavra me assusta.

Foi no dia do cinema. Tudo foi perfeito. Nosso passeio e nossa conversa. O beijo demorado na parte chata do filme. Mas o filme era bom. Quando queremos o beijo sempre é melhor do que uma cena de filme. Você me fez carinho na perna, mas eu travei. Tive medo do que senti. Não, não poderia ser tão rápido. Não posso, chega! A sua voz quente no meu ouvido... Era um riso, era um sussurro, eu não entendia bem. Mas só o seu movimento na minha direção já me arrancava um sorriso cúmplice. E eu guardei os ingressos daquele dia. Mesmo rasgados.  

segunda-feira, 20 de junho de 2011

As janelas do mar

E daí se eu perceber que até aqui não dava pé mesmo? Porque mesmo que prendesse a respiração e mergulhasse lá no fundo, não alcançaria nenhum tesouro do naufrágio. As algas pairando sob a turbidez de águas que já passaram. Cortinas fechadas.

Mesmo que me embalasse nas canções mais antigas, e até finjo que as sei cantar, quando tento sincronizar meus lábios mudos nos versos da canção, para dar impressão de que conheço o refrão de cor, entoando alto as vogais do fim de cada frase, na hora das consoantes recorro ao longo gole de vinho. Algumas pessoas chatas sempre surgem lá, à lembrança, ao corredor. As aspas pairando sob a sordidez de ventos que já sopraram. Janelas abertas.

Todos nos sentimos sozinhos nas escolhas. Por mais simples que sejam. Mas lembrei de minha tia: minha filha, nenhuma escolha é fácil; Fosse, não se chamaria assim. Talvez dessem o nome de sorte. E logo me veio à memória o garoto que pregou aquela peça em Santo Agostinho. Colocar toda água do mar num buraco cavado na areia. "Quem fita o sol, deslumbra-se e quem persistisse em fitá-lo, cegaria."

domingo, 2 de janeiro de 2011

Mudanças

Recortar a memória
Peneirar os pedacinhos da lembrança
Que ainda ele me traz
Escrevo porque me divido nas palavras
E porque das palavras me multiplico
Sou múltipla de mim

Quanto mais desato a criar poesia: crio-me
Ainda sentada à beira do lago
No balanço constante das árvores à beira-sonho
Espelho d´água não reflete quem sou
As mudanças são os pedacinhos que não passaram
Pela peneira de mim: tanto frio me envolve
Que me abraço só
Minhas mãos sobre meus ombros numa inversão calorosa
Quando as mãos envolvem os ombros opostos
Giro o pescoço

Meus olhos transformam a direção do que procuram
Estou só aqui dentro de mim
Nada muda
Sou de andar descalça pelo mundo

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Cinzas da manhã


Eu gosto das manhãs cinzas e esfumaçadas. Como as de hoje. Fico quietinha dentro de mim, procurando fora do corpo um pedacinho de luz. É gostoso buscar palavras que signifiquem um sentimento que não sei o nome. E será que ele existe? Às vezes acho que existem sentimentos que não têm nome. Como o vapor quente que se apossa do meu ventre e sobe ao coração.


A minha janela é pequena. É de lá que vejo os passarinhos e as antenas dos outros prédios confundindo as paisagens. Dá saudade do mar, mas não das águas azuis e transparentes, e sim do oceano branco da ressaca, igual à colcha da cama, outro leito para navegar. Ainda não sei bem porque as manhãs se parecem com as águas, porque as antenas se entrelaçam com os passarinhos, mas sei que as cinzas enferrujadas do meu coração me queimam o ventre. Hoje acordei com vontades de domingo.


As ruas ficam tão longe de mim, não me levam a lugar algum. Sou mais ansiosa quando penso em não ser tão ansiosa, ergo construções fiéis às minhas projeções, todas em mim, todas rascunho. Os pinheiros, as amendoeiras, os coqueiros da minha janela estão acizentados. Meus olhos turvos, foscos. Como se minha pele fosse outra pele, como se minha voz fosse outra voz. Minhas vontades de domingo são transparentes, quase metálicas. Hoje estou vazia e a falta de mim, dentro de mim, me conforta, porque sei que toda mulher tem em si o desejo conflitante de uma solidão inversa: proteger-se.


As manhãs metálicas têm gosto de saudade. É tão forte, é tão gritante a vontade de saber das pessoas. Saber que aquele senhor do ponto do ônibus vai ser aquele senhor do ponto do ônibus. Sempre. Mas por que está ali? Para onde vai? E a moça que vende salgadinhos? Nunca comprei uma coxinha que fosse, um risole de frango, mas sempre a procuro, sempre a encontro, e meu coração ganha um acalanto toda vez que vou trabalhar e vejo o senhor do ponto de ônibus e a moça dos salgados. Em dias coloridos ou cinzas. São pessoas que são parte de mim e nem sabem disso. Porque sou um pouco todo mundo, tem Carmens que existem fora de mim e vêm me buscar nos pequenos gestos sem cor, mas que têm vida. Eu vivo nas pessoas anônimas. Eu gosto de me ter nos outros, de ler quem são, de escrever quem sabe? Porque minha alma cigana, meu nomadismo afetivo, meu sofrimento do amor, são restos do meu coração ferido, mas vivo, que erra, que faz besteira, que falha, que não se permite mais.


Hoje acordei mesmo sem ter dormido. Sonhei e fui tudo, fui menos, fui mais do que sou. A cama vazia com lençóis bagunçados, travesseiros dobrados, cheiros que não voltam. Memórias que ficam. Cinzas da manhã.