Aconteceu de novo. O
rasgo da lembrança no ar. Pétalas de mim.
O dia em que você me
deu a mão. Você não me conhecia, mas nem eu a mim. Soube lá. Quando você falou
de Pessoa como se fosse seu melhor amigo. Amar é pensar, lembrei. Eu também não te conhecia e você me
apresentou a Bernardo Soares. Você apareceu naquela noite quando eu não
esperava nada. Quando pude olhar para mim e ter certeza que, sim, eu me
permito. Eu me entrego. O calor da constatação sublime: quero amar de novo.
Não me importava com
seus atrasos, justificados e perdoados por causa do seu sorriso lento. Também
não me irritava com seu falatório bêbado e melancólico. Mas gostava de entrar
no táxi e você saber de cor meu endereço. E quando me vi feliz, tive medo. Um
medo que nunca tive antes, um temor de que poderia ficar vulnerável outra vez,
que poderia, de novo, me ferir. Você me vem com Pessoa... A culpa é toda sua.
Mesmo que eu seja punida por mim mesma. Porque seu olhar é nítido como um girassol. Ai, que raiva de vocês dois!
Vai acontecer
sempre. Você aqui ao meu lado, segurando a minha mão, passando seu polegar
sobre as costas da minha mão, dizendo que a minha mão é maior que a sua. Que
seu uísque é caubói e que meu beijo é bom. Que gosta do que escrevo e como
escrevo. Sem saber nunca que a sua língua se torna minha palavra e que a sua
palavra me assusta.
Foi no dia do
cinema. Tudo foi perfeito. Nosso passeio e nossa conversa. O beijo demorado na
parte chata do filme. Mas o filme era bom. Quando queremos o beijo sempre é
melhor do que uma cena de filme. Você me fez
carinho na perna, mas eu travei. Tive medo do que senti. Não, não poderia ser tão
rápido. Não posso, chega! A sua voz quente no meu ouvido... Era um riso, era um sussurro, eu não
entendia bem. Mas só o seu movimento na minha direção já me arrancava um
sorriso cúmplice. E eu guardei os ingressos daquele dia. Mesmo rasgados.
Na ilha por vezes habitada
ResponderExcluirNa ilha por vezes habitada do que somos, há noites,
manhãs e madrugadas em que não precisamos de
morrer.
Então sabemos tudo do que foi e será.
O mundo aparece explicado definitivamente e entra
em nós uma grande serenidade, e dizem-se as
palavras que a significam.
Levantamos um punhado de terra e apertamo-la nas
mãos.
Com doçura.
Aí se contém toda a verdade suportável: o contorno, a
vontade e os limites.
Podemos então dizer que somos livres, com a paz e o
sorriso de quem se reconhece e viajou à roda do
mundo infatigável, porque mordeu a alma até aos
ossos dela.
Libertemos devagar a terra onde acontecem milagres
como a água, a pedra e a raiz.
Cada um de nós é por enquanto a vida.
Isso nos baste.
de José Saramago
Carmem, que bom que você voltou a escrever!
A pele que habito arrepia-se diante de sua sensibilidade áspera.
beijos
"E eu guardei os ingressos daquele dia. Mesmo rasgados".
ResponderExcluir*****SPECIAL RESERVE*****