quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Cinzas da manhã


Eu gosto das manhãs cinzas e esfumaçadas. Como as de hoje. Fico quietinha dentro de mim, procurando fora do corpo um pedacinho de luz. É gostoso buscar palavras que signifiquem um sentimento que não sei o nome. E será que ele existe? Às vezes acho que existem sentimentos que não têm nome. Como o vapor quente que se apossa do meu ventre e sobe ao coração.


A minha janela é pequena. É de lá que vejo os passarinhos e as antenas dos outros prédios confundindo as paisagens. Dá saudade do mar, mas não das águas azuis e transparentes, e sim do oceano branco da ressaca, igual à colcha da cama, outro leito para navegar. Ainda não sei bem porque as manhãs se parecem com as águas, porque as antenas se entrelaçam com os passarinhos, mas sei que as cinzas enferrujadas do meu coração me queimam o ventre. Hoje acordei com vontades de domingo.


As ruas ficam tão longe de mim, não me levam a lugar algum. Sou mais ansiosa quando penso em não ser tão ansiosa, ergo construções fiéis às minhas projeções, todas em mim, todas rascunho. Os pinheiros, as amendoeiras, os coqueiros da minha janela estão acizentados. Meus olhos turvos, foscos. Como se minha pele fosse outra pele, como se minha voz fosse outra voz. Minhas vontades de domingo são transparentes, quase metálicas. Hoje estou vazia e a falta de mim, dentro de mim, me conforta, porque sei que toda mulher tem em si o desejo conflitante de uma solidão inversa: proteger-se.


As manhãs metálicas têm gosto de saudade. É tão forte, é tão gritante a vontade de saber das pessoas. Saber que aquele senhor do ponto do ônibus vai ser aquele senhor do ponto do ônibus. Sempre. Mas por que está ali? Para onde vai? E a moça que vende salgadinhos? Nunca comprei uma coxinha que fosse, um risole de frango, mas sempre a procuro, sempre a encontro, e meu coração ganha um acalanto toda vez que vou trabalhar e vejo o senhor do ponto de ônibus e a moça dos salgados. Em dias coloridos ou cinzas. São pessoas que são parte de mim e nem sabem disso. Porque sou um pouco todo mundo, tem Carmens que existem fora de mim e vêm me buscar nos pequenos gestos sem cor, mas que têm vida. Eu vivo nas pessoas anônimas. Eu gosto de me ter nos outros, de ler quem são, de escrever quem sabe? Porque minha alma cigana, meu nomadismo afetivo, meu sofrimento do amor, são restos do meu coração ferido, mas vivo, que erra, que faz besteira, que falha, que não se permite mais.


Hoje acordei mesmo sem ter dormido. Sonhei e fui tudo, fui menos, fui mais do que sou. A cama vazia com lençóis bagunçados, travesseiros dobrados, cheiros que não voltam. Memórias que ficam. Cinzas da manhã.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Louça empilhada

Os pratos sujos empilhados na pia, as taças manchadas sobre a mesa da sala. Silêncio. Tudo foi uma confusão de ontem. O torcicolo que me acompanha. Mal consigo abrir os olhos, porque as persianas mal ficaram fechadas. O fiapo de luz à procura do carpete. Meus cabelos espalhados sobre as almofadas, minha cabeça rodopiando no escuro da confusão, porque sobrou-me hoje. Restos de uma menina num apartamento vazio de amanhãs, esses dias intermináveis.


As náuseas que me visitaram pela manhã, não houve remédio que curasse. Chá de boldo aos baldes, mas a culpa da ressaca é pior do que a ressaca. E não cabe às taças de vinho me ensinarem qualquer lição, porque a raiva de mim mesma desvia-me da razão, então culpo o telefone, porque não estava sem som, pois esqueci de modificar a campainha, por isso então ele ligou. E eu atendi.


Não queria vê-lo, penso em outro. Mas a tremedeira que me dá por todo corpo, cabeça aos pés, só de enxergar seu número na tela de meu telefone celular, é involuntariamente desesperadora. Não respiro bem, esqueço de todas as consoantes, me agarro às vogais e outros apetrechos sonoros do idioma. Interjeições quase mudas, sinto meu rosto ferver pelas maçãs, e sinto uma vergonha repentina de tudo. Mas lembro que da nossa língua, só nós sabemos. E volto a existir.


Desta vez não me aprontei. Fiquei sem maquiagem, sem perfume. Camisola e calcinha. Não queria mais ser quem ele sempre soube quem fui, mas sim ser quem me tornei depois de me apaixonar. A paixão transforma a mulher e comigo não foi diferente. Mas hoje há outro que me deseja, que diz que me ama, mas ainda não sou esta que ele pensa ver, sou um intervalo entre a falta de amor e o excesso de zelo.


Quando ele chegou, garrafa de vinho à mão, eu já o esperava com as taças postas. Sem festa. Um beijo no rosto. Frio. Minhas maçãs murcharam. Mas bebemos, rimos e conversamos, mesmo quando eu já percebia que não havia mais sentido, porque meu tesão era da nossa história, do que vivemos e não do que fizemos de nós, do que nos tornamos. Mais bebida e mais comida, a última sede da fome que fomos. Fiz amor mas não amava mais. E meu pescoço dói, agora, por um motivo. Por isso, sorri das confusões do tempo e pensei: há muita louça para lavar.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Cores da tua cor

És a mistura entre breus e claridades
De todas tardes
Peles envernizadas de sol

Entre

Tantas tintas rabisco de luz
Cortes da mesma cor
Clarões sob pálpebras

Enquanto

Teu gesto pequeno
Meus outros olhares
Serena ao me devorares
Respiro perfumes
Ares
Caminhas em calçadas
Antigas

Somos

Pedaços de rua
Cirandas novas como cantigas

E

Da tua voz baixa e tímida
Do embaraço dos teus sons
Teu olhar é repouso da manhã

Assim

Teus
Temas
E tons
É do teu silêncio que gosto

Estamos

Entre o intervalo do teu
E o meu espaço

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Outras de mim


Você acaba de bater a porta. Junto do seu cheiro também se desfaz sua imagem. Seus passos abandonados marcando o chão do corredor. Desce as escadas, quem sabe, por causa da pressa do arrependimento. Um vazio me corta o corpo. Seu abandono diário, sua renúncia noturna ao esmurrar a mesma porta que, carinhosamente nos dias seguintes, a afaga com as mãos onde repousaram minha cabeça. E meu passado.


Quando você sai, fecho os olhos e acompanho com meus ouvidos sua respiração no eco do corredor. O barulho do telefone sendo novamente ligado, sua voz muda ao desculpar-se com ela, e chego a rir de boba que sou, quando me dou conta que já perdia a conta de quantas vezes minha casa era, para ela, a casa de algum amigo seu. Você já fez pior, já me tirou da sua cama quando ela estava a chegar à sua casa, quando fui enxotada, às gargalhadas, para seu desespero, pelas portas dos fundos. É assim que vivemos, pelos fundos, por debaixo, por fora. Por enquanto.


Então é a hora que me vejo livre do que fomos, quando busco força na minha solidão antiga e passo a perceber que quando estou contigo não sou quem preciso ser. Você me fere, me faz mal, me acorda de madrugada, me faz dormir pela manhã, me assalta os sentidos e, não, você não me faz mulher, você me faz uma menina assustada que faz do seu peito meu repouso. Mas não um lar.


Gosto quando você come minha comida. Gosto quando sou sua comida. Você é tudo que eu mais gosto, mas tudo que mais gosto não gosta de mim, então agora que você bate a porta, aproveito para desfazer meus sonhos e embrulhar meu coração surrado. Suas malas estão prontas. Você aqui não existe mais, mesmo que surjam outras de mim.

domingo, 11 de julho de 2010

A última vez que te vi

E fui ao terraço acender meu penúltimo cigarro. E você subiu com sua violência costumeira, marcando com força cada degrau das escadas da casa. E eu procurava os fósforos nos bolsos da calça. E a noite estava clara. E a porta caiu sobre o chão do terraço, você voltando a me xingar e me expulsar da tua vida. Meu choro burro, minha tristeza lenta. E você a me estapear a cara com suas palavras afiadas e covardes. Meus tragos não traziam fumaça, traziam lembranças. Teus gritos não me traziam dor. Os degraus da casa são os degraus da casa. Tua escada é outra.

E desci.


Tiveste raiva quando disse que te amava. Minha voz rouca e amarela inundou o quarto. Afoguei-me. Seus pés grossos me raspando as coxas, me expulsando da cama. Meu susto ao ver que eu te amava. Meu susto ao ver que eu te amava, mas você não. Meu susto ao ver que eu te amava, mas você não e eu não me importar. Meu susto ao ver que eu te amava, mas você não, eu não me importar, mas você, sim, e me xingar, me bater com berros e me castigar com suas mãos e dentes. Minha vontade de mulher ao descer ladeira abaixo e me sentir vulnerável, depois do susto em te amar com toda minha força - e te odiar com toda minha fraqueza. É aí que finjo me saber menos para ser tua.


Tiveste mais raiva quando gargalhei nervosa de seus sussurros de prazer, ao referir-se a mim como a outra, ao pensar na outra para pensar em mim, pois és mais homem comigo, sei, sabes, porque és mais dela quando estás em meus braços, exausto, pequenino, indefeso, mas inteiro. És meu. E me senti a mulher mais amada do mundo: tua.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Águas passadas

Não consigo mais escrever. Ando sem inspiração, minha vida anda suspensa e as palavras não têm apetite. Minha cabeça é uma confusão de imagens e barulhos. Minha cabeça é uma confusão cega e muda. Está escuro sempre quando acordo. Está claro? Não organizo planos, não planejo fugas. Escuso, divido-me em prisões e liberdades. Queria poder querer sem culpa. Poderia querer. São tantos futuros falsos, tantos presentes que já se passaram. Tantas vezes fui eu sem ter sido, sempre fiel às projeções de mim.


Inicio discussões comigo mesma, sempre sentada à beira do sofá, acendendo um cigarro seguido de outro, para não perder o raciocínio do erro, para não ganhar a preguiça das conclusões. Respiro forte para ouvir o coração. Penso forte, para silenciar meu medo. Insisto em equilibrar-me entre mim e minha sombra, não há luz que conduza meu corpo esquecido. Meu corpo ausente. Não corrijo o quadro torto na parede.


Desato a procurar-me no meio das pessoas. Fumaças da rua e dos carros. Do meu cigarro aceso pela luz que esqueceu meu corpo. Pairo sob sombras, entre mim meu próprio equilíbrio, sou preguiçosa e não consigo mais escrever. Continuo a andar. Minha imagem é uma confusão de cabeças e queria sentir sem culpa. Queria não sentir sem culpa. Queria esconder-me dentro de mim e fazer da ausência do meu corpo meu refúgio. O mundo não pertence a mim nem eu. Quem me tem além do que vivi?


Deixo a água do chuveiro massagear o couro cabeludo, meus cabelos, cortinas. Descanso o rosto no antebraço, apoiado acima da torneira. O som da água estalando no chão, o gesto da água deslizando pelo ralo, a pressa da água em lavar meu rosto, o palco de minhas emoções. Não há madeixas suficientes para cobrir minhas maçãs quentes desse mesmo rosto triste e borrado: águas passadas.


Pois assim me vejo. Discurso sobre tudo, mas não consigo mais escrever. O coração surdo, a respiração forte e a cabeça confusa com imagens sem planos. Ou planos sem imagens. Pois, assim, não me vejo. E não consigo mais escrever.

sábado, 17 de abril de 2010

A chaminé do tempo



Hoje acordei triste. Fiquei na cama. Dormi e continuei triste. Todas as manhãs têm sido de tal maneira, como se fosse uma superfície de luz onde repouso meus sonhos. As tardes nunca chegam, nunca terminam, nunca ficam. As vontades trêmulas me impedem de sair do quarto e da casa. Já não consigo ir trabalhar, me cansa a ideia de ter ideias, reconforto-me em planos. Reconsidero certezas e admito dúvidas, pois já não quero ser quem deveria, porque me permito um suicídio moral. De nada adianta meu ofício, estou desiludida com tais obrigações. Os passarinhos contornam o tempo. As nuvens rabiscam o chão. Os ventos sopram os passarinhos que contornam as nuvens que rabiscam o tempo. E eu permaneço muda dentro de mim. Não quero continuar a esperar, espero. Mas não fazer nada é diferente de esperar.


O mundo corre em pistas lambuzadas de óleo. Eu me escorrego pelas curvas. Não há lugar menor que eu. As pessoas atravessam com suas bengalas tristes e dos esgotos saem o cheiro do chão. Debaixo das galerias, a água é suja. Mas as nuvens alcançam meus sonhos. No chão. Se do meu ventre sairão vidas, não vejo, mas percebo que sou a vida dentro de tantas outras. Sou quase uma bengala triste, porque encontram em mim o apoio do mundo. O mesmo que derrapa em curvas lambuzadas de esgoto.



Abrir as janelas para entrar o cheiro de mofo. Lembro das tardes nos campos. Não tinha sol, mas calor havia. As palmas das mãos espalhadas pela terra vermelha, deixando que entre os dedos finos e compridos escapassem a lama da chuva de outro dia. Não tinha sol, mas luz havia. E só quando subia a árvore do quintal vizinho conseguia ver meus sonhos. E mesmo de longe era possível enxergá-los, repousados sob uma superfície de sol, que não aparecia nunca, mas só quando não havia calor nem luz. Todas as manhãs eram dessa maneira, assim como a tristeza que me dilacerou as certezas por causa de outras certezas, que, agora, eram dúvidas. Pausa. Porque esperar é mais do que não fazer nada.



E lembro das folhas caídas na varanda da casa. Do cheiro de café misturado com o bafo do fogão: do cheiro da lenha crua. E lembro de quando tive um sonho. De quando acordei. Triste. Quando escolhi uma profissão. Triste. Lembrava das tardes que sentava à beira da porta, com os pés descalços encostados dois degraus abaixo, para dar a impressão, que, mesmo sentada, sentia-me maior. Sempre fui maior quando olhava para frente, mesmo quando não estava debruçada sobre os balaústres da varanda imensa dos fundos da casa. A chaminé não funcionava em dias de sol. Só quando fazia frio. É assim que me sinto: uma lareira abandonada.

sábado, 6 de março de 2010

Às esculturas

Abro a caixa antiga de biscoitos onde guardo lembranças, algumas escritas, e permito trair-me, buscando respostas para tudo onde não havia perguntas. Deparei-me comigo vagando pela nostalgia soturna de escolhas que não fiz, pois às que me permiti não mais são, tornaram-se quem sou. Se buscava uma carta antes da outra, se queria mudar as coisas, a ordem dos acontecimentos, não poderia despejar minha felicidade numa mesa pequena de madeira com minha vida petrificada sobre uma toalha cigana. Escrevi pra ele dizendo que revirei alguns cômodos da casa, e do tempo, e acabei por lembrar o que nunca tinha sentido falta. Besteira, não devia tê-lo feito, me senti ridícula, porque só as egoístas proclamam derrotado o passado. Novidade seria reverenciar os que se aproximam.




Também procurei na infância o ritual que minha avó costumava realizar durante os festejos de casamento na cidade onde nasci. Fazia sempre frio naqueles tempos e nossas tendas armadas nos bosques da região nos protegiam dos ventos gelados da floresta. Quando homem e mulher decidiam se casar, os noivos eram chamados para uma conversa íntima, mas separadamente, primeiro ele – depois ela. Vovó tirava da prateleira três pequenas esculturas e as expunha numa pequena mesa de madeira. Em cada uma delas estavam desenhados um homem e uma mulher, a sugerir que eram amantes, em três momentos distintos: a beijar, a abraçar e a fazer amor. “Coloque na ordem de importância, sob seu julgamento.” Caso a sequência escolhida pelo noivo não fosse a mesma apontada pela noiva, o casamento não saía. Seria preciso outro ano de espera.




Não foram poucas as vezes que sonhei com esse dia, essa apreensão inexplicável do amor, a aflição pelo inesperado. E achava curiosa a forma sob a qual minha família enxergava esses sentimentos. Lançar a sorte das pessoas que se amam em formas esculpidas em barro ou pedra?Sempre respeitei a tradição, que existe há mais de quinhentos anos, mas hoje sinto que não é bem assim, que pode-se haver amor fruto da sorte. Ou das coincidências, casos elas existam. De fato, há quem acredite nos encontros, outros em topadas ou mesmo tropeços, outros preferem caminhar sem sair do lugar, mas a queda de quem fica é mais dolorosa da de quem parte. Tudo está para movimentos, como o paradoxo da intimidade, compreendido em três estatuetas, pois o que não é adorar esculturas, senão a reverência à solidão de concretos.




Pela manhã levanto e vou direto ao computador. Preparo o chá, esvazio minha caixa de correspondências eletrônicas – quem dera se pudesse apagar também as afetivas, talvez porque não há. Prendo o cabelo e coloco os óculos embaçados por causa da fumaça quente que sai da caneca, procurando um lugar bonito para conhecer, mas distante, porque a mim já sei o suficiente para querer ir embora. Ainda não descobri como debandar-me. Acho que virei uma escultura de mim mesma.




Mas é o que faço agora. Não procuro mais nele algum motivo para não continuar. Não quero e ponto. Busco em mim o motivo da fuga, porque escapar ainda é preciso, sempre será, portanto mais importante de saber o que se está procurando é saber do que se tem medo. São dois rumos em direção ao mesmo destino. É necessário debandar-se de si para entender que o beijo e o sexo de nada valem sem o abraço de quem ama. Não sou esculpida pela tradição. A minha ordem é outro ano que começa: outra vida.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

A paixão escalpelada

Cortei a garganta com o trago mais forte do teu corpo. Cheguei a me retorcer de dor quando recebi de ti um prazer que de tão incômodo tornou-se necessário, assim, quase desesperador. E te procurei nas marcas que tu deixaste em meu corpo, com teus dentes afiados, tua barba áspera e tua língua desafinada. Também deixei que tua saliva secasse na minha pele ferida de amor, para eternizar teus beijos despedaçados por causa da bebida. O cheiro de cigarro esbaforido de outros tragos, não aquele que me tirou a voz, mas o que me trucidou outros gostos. Sorvi teus líquidos e me descobri de vez, mesmo quando ainda não me sabia. E foi aí que me arrastei pro chão de novo, pra esperar teu peito pousar sem aviso no meu e ser mais uma vez atropelada por braços e pernas e pêlos e boca, como um furacão de sentidos sem sentido, ainda bem que não há, mal sabe disso quem não ama – e quem não se deixa amar. E sorrio ao ver as marquinhas novas em meus joelhos, outra maior no meu cóccix, quando o carpete me escalpela no teu ritmo silencioso e ansioso, e é quando sou morta, quando desejo ser morta por ti. Morro e sobrevivo em carne-viva, insurgida pelos prazeres da despedida, abandonada pela euforia do gozo. Sou menos minha e mais tua, toda vez que bates a porta e me deixa trancada do lado de dentro de mim, assustada com os ecos de um arrependimento consentido, o maior paradoxo dos que se amam em segredo.



Então dirijo na velocidade das lágrimas, ouvindo a nossa música, me esgoelando em tantos refrões que não importa mais o que diz a letra, mas a forma que minha voz toma ao conciliar nos versos a poesia suja da tua, teus desejos sacanas, tua vontade de me comer sem tempero, sem vergonha e sem necessidade. Tua vontade de me ter sem estar comigo, sem alarde, debaixo das cobertas e da mesa. E prendo meus cabelos com o rabo-de-cavalo alto, do jeito que tu pedes, quando acendo o cigarro e ponho as mãos no volante, o vidro meio-aberto, as minhas pernas meio fechadas, revezando a embreagem e acelerador, sei que também não gostas de freios, e o calor que me assalta ao sentir tua mão pesada e atrevida ao apertar com força a minha coxa faz com que cheguemos mais rápido ao nosso destino, mas quantos serão, quantos seriam, porque meu coração estremece, desacelera, enquanto o vento me violenta o rosto e acaricia o teu, e o sorriso mau caráter, que sei que só tens ao estares comigo.



Quantos sorrisos podem ter uma boca, a minha só um, a tua só outros. Mas se sorrires para outras como sorris pra mim, elas nunca saberão, mas eu, sim, porque voltarás diferente e eu não mais me degolarei com teu trago, mas na minha garganta surgirão outros cortes. Da minha língua ferida e arrependida.