quinta-feira, 20 de maio de 2010

Águas passadas

Não consigo mais escrever. Ando sem inspiração, minha vida anda suspensa e as palavras não têm apetite. Minha cabeça é uma confusão de imagens e barulhos. Minha cabeça é uma confusão cega e muda. Está escuro sempre quando acordo. Está claro? Não organizo planos, não planejo fugas. Escuso, divido-me em prisões e liberdades. Queria poder querer sem culpa. Poderia querer. São tantos futuros falsos, tantos presentes que já se passaram. Tantas vezes fui eu sem ter sido, sempre fiel às projeções de mim.


Inicio discussões comigo mesma, sempre sentada à beira do sofá, acendendo um cigarro seguido de outro, para não perder o raciocínio do erro, para não ganhar a preguiça das conclusões. Respiro forte para ouvir o coração. Penso forte, para silenciar meu medo. Insisto em equilibrar-me entre mim e minha sombra, não há luz que conduza meu corpo esquecido. Meu corpo ausente. Não corrijo o quadro torto na parede.


Desato a procurar-me no meio das pessoas. Fumaças da rua e dos carros. Do meu cigarro aceso pela luz que esqueceu meu corpo. Pairo sob sombras, entre mim meu próprio equilíbrio, sou preguiçosa e não consigo mais escrever. Continuo a andar. Minha imagem é uma confusão de cabeças e queria sentir sem culpa. Queria não sentir sem culpa. Queria esconder-me dentro de mim e fazer da ausência do meu corpo meu refúgio. O mundo não pertence a mim nem eu. Quem me tem além do que vivi?


Deixo a água do chuveiro massagear o couro cabeludo, meus cabelos, cortinas. Descanso o rosto no antebraço, apoiado acima da torneira. O som da água estalando no chão, o gesto da água deslizando pelo ralo, a pressa da água em lavar meu rosto, o palco de minhas emoções. Não há madeixas suficientes para cobrir minhas maçãs quentes desse mesmo rosto triste e borrado: águas passadas.


Pois assim me vejo. Discurso sobre tudo, mas não consigo mais escrever. O coração surdo, a respiração forte e a cabeça confusa com imagens sem planos. Ou planos sem imagens. Pois, assim, não me vejo. E não consigo mais escrever.

2 comentários:

  1. " São tantos futuros falsos, tantos presentes que já se passaram. Tantas vezes fui eu sem ter sido, sempre fiel às projeções de mim."

    fidelíssima ficção!

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