quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

A paixão escalpelada

Cortei a garganta com o trago mais forte do teu corpo. Cheguei a me retorcer de dor quando recebi de ti um prazer que de tão incômodo tornou-se necessário, assim, quase desesperador. E te procurei nas marcas que tu deixaste em meu corpo, com teus dentes afiados, tua barba áspera e tua língua desafinada. Também deixei que tua saliva secasse na minha pele ferida de amor, para eternizar teus beijos despedaçados por causa da bebida. O cheiro de cigarro esbaforido de outros tragos, não aquele que me tirou a voz, mas o que me trucidou outros gostos. Sorvi teus líquidos e me descobri de vez, mesmo quando ainda não me sabia. E foi aí que me arrastei pro chão de novo, pra esperar teu peito pousar sem aviso no meu e ser mais uma vez atropelada por braços e pernas e pêlos e boca, como um furacão de sentidos sem sentido, ainda bem que não há, mal sabe disso quem não ama – e quem não se deixa amar. E sorrio ao ver as marquinhas novas em meus joelhos, outra maior no meu cóccix, quando o carpete me escalpela no teu ritmo silencioso e ansioso, e é quando sou morta, quando desejo ser morta por ti. Morro e sobrevivo em carne-viva, insurgida pelos prazeres da despedida, abandonada pela euforia do gozo. Sou menos minha e mais tua, toda vez que bates a porta e me deixa trancada do lado de dentro de mim, assustada com os ecos de um arrependimento consentido, o maior paradoxo dos que se amam em segredo.



Então dirijo na velocidade das lágrimas, ouvindo a nossa música, me esgoelando em tantos refrões que não importa mais o que diz a letra, mas a forma que minha voz toma ao conciliar nos versos a poesia suja da tua, teus desejos sacanas, tua vontade de me comer sem tempero, sem vergonha e sem necessidade. Tua vontade de me ter sem estar comigo, sem alarde, debaixo das cobertas e da mesa. E prendo meus cabelos com o rabo-de-cavalo alto, do jeito que tu pedes, quando acendo o cigarro e ponho as mãos no volante, o vidro meio-aberto, as minhas pernas meio fechadas, revezando a embreagem e acelerador, sei que também não gostas de freios, e o calor que me assalta ao sentir tua mão pesada e atrevida ao apertar com força a minha coxa faz com que cheguemos mais rápido ao nosso destino, mas quantos serão, quantos seriam, porque meu coração estremece, desacelera, enquanto o vento me violenta o rosto e acaricia o teu, e o sorriso mau caráter, que sei que só tens ao estares comigo.



Quantos sorrisos podem ter uma boca, a minha só um, a tua só outros. Mas se sorrires para outras como sorris pra mim, elas nunca saberão, mas eu, sim, porque voltarás diferente e eu não mais me degolarei com teu trago, mas na minha garganta surgirão outros cortes. Da minha língua ferida e arrependida.

4 comentários:

  1. Pilar a tua paixão te devora...
    Será q. vc tem sangue baiano ?
    Mas gosto de ler um texto assim:
    As cartas na mesa, e seja lá o
    que tiver de ser, muita pimenta e
    os sentimento à flor da pele...
    Vai fundo, a estrada é um desafio
    cheio de curvas e sobressaltos...

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  2. "Amor" doente e o drama de ser mulher, vítima de um cafajeste e de si mesma. Um texto digno sobre os "amores" dos quais devemos pular fora.

    E quando o fazemos podemos relê-lo, nos sentindo livres, inteiras e muito maiores do que aquelas eternas últimas transas.

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  3. Cara! Dirigir na velocidade das lágrimas... é uma das melhores construções poéticas que eu já li!

    Não vou falar mais nada, para não diminuir a minha manifestação de admiração!


    Vc é poesia! Corrompida e maravilhosa poesia!

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  4. "Vai fundo, a estrada é um desafio
    cheio de curvas e sobressaltos..."
    a Sandra sabe tudo!

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