domingo, 1 de novembro de 2009

Um beijo roubado

Bebi a primeira taça e senti sua presença pela gargalhada alta, já devia estar bêbado. Depois de alguns longos goles, quase engolindo o orgulho, caminhei na direção oposta de onde ele estava, propositalmente, para que quando chegasse nos fundos do salão, pudesse ver pelo espelho seu reflexo. Passei entre as pessoas, pedi licença com educação, enquanto me preocupava em ficar logo embriagada, devolvendo às bandejas os cristais vazios, e pinçando os cheios, pois assim me livraria dos olhares imaginários de quem reprovava minha presença. Perdi de vista alguns sentidos, depois de perdê-lo na pista de dança. E aí fui eu quem começou a dançar, quase esquecendo o motivo de minha ida à festa, esquecendo de quem era a despedida. Eu já tinha ido embora mas meu corpo continuava rebolando a todo vapor, intensamente, como tudo que vivemos antes e depois de nos conhecermos. Vivíamos sempre nos despedindo.

Tão breve quanto um beijo roubado, um intervalo entre dois suspiros. É mais essa peça que me prega o destino. Não acreditei quando recebi a notícia de que ele iria embora de vez. Tudo bem, já havíamos discutido isso antes, nos tempos onde tudo fica no futuro, nos momentos onde nada ficava pra trás. Reencontrá-lo, eu sei, não poderia me fazer bem, seria mexer em ferida antiga, fechada por fora, mas aberta por dentro, e que se encerra nas lágrimas que percorrem, agora, o curso da saudade. Antes o desvio da tristeza me trucidava a fogo baixo. Me sentia cozida lentamente pela ansiedade que me sufocava inteira, acho que por isso que não conseguia dormir mais. Já não sei se a noite consegue me acompanhar, porque meu passo largo não me faz abraçar o mundo com as pernas. Coincidentemente, quanto mais perto chegava a hora de revê-lo, aumentava a vontade de nunca mais sentir essa culpa, que me consome com toda a razão. No entanto, é engraçado como esse lapso conflitante dura apenas os segundos que demoro na frente do espelho, enquanto passo lápis nos olhos, delineando cuidadosamente as pálpebras, antes do toque final. Ele adora meus cílios e eu adoro quando ele diz isso e repete como se fosse a primeira vez.

Apesar dele nunca ter reparado nas minhas mãos, ainda assim, sei que é coisa de cigana, como dizia sempre minha avó, fui ao salão correndo. Não havia tempo a perder. Não sei se as outras pessoas concordariam comigo, mas acho que as unhas dizem muita coisa. Não é só a cor que se escolhe, mas quando e porquê. A energia das mãos está nas linhas das palmas, mas é das unhas que nasce a luz que nos reflete nos olhos. Na escuridão da ansiedade, da minha ansiedade de viver tudo, e depois o meu arrependimento de não tê-lo. Como se houvesse uma conexão. E ele nunca, nunca, percebeu isso. Jamais soube que eu me vestia só pra ele. Mas sempre entendia quando não estava mais vestida. Pra ele.

Arrumada e perfumada fui ao lugar da despedida. Entrei rapidamente, olhei para um lado, para o outro, procurei algum rosto conhecido. Encontrei feições que não me eram estranhas, mas todos eram estranhos ali, na medida em que me questionava, ou melhor, me xingava em pensamento, que besteira e desperdício de tempo em me maquiar e fazer unha, porque ainda me enganava, me iludia, e ainda mais toda essa conversa de menina, que a unha é luz da mão. Acho que a mulher quer ficar bonita pra ela mesma e eu estava linda! Linda, de verdade. Um arraso, não ia pra ter pra ninguém, principalmente praquela ex-atual.

Foi quando me puxou pela mão um homem que nunca tinha visto na vida. Quase me machucou, tamanha a força colocada no gesto. Era bonito, mas não tive tempo de olhar uma segunda vez, porque já me tinha sussurrado ao pé do ouvido alguma coisa. Gostei da atitude, mas, poxa, apesar da forma quase truculenta, percebi que foi por nervosismo, e não estupidez, talvez por isso não o tenha reprovado logo de cara, mas o movimento para se aproximar de mim foi de homem. Quando reparei ao redor, vi que ele, não o que me puxou pelas mãos, mas o que nunca tinha reparado nelas, e sim nos meus cílios, me observava do bar. Me encarava com um ar de conquistador, tinha uma certeza de si, que mais parecia um predador intimidando sua presa pouco antes do abate. Mas no rebanho da cabeça dele, que ironia, haveria de ter mais chifres e coices do que filés ou outros cortes. O rapaz do puxão dançava ao meu lado e, de novo, me puxou, mas dessa vez, foi delicado e me sorriu com firmeza, mas bem mais gentil.

Quando o outro percebeu (isso, sim, ele percebia) que a roda viva ia rodar, caminhou na minha direção. Apertou o passo, mas quem anda pra frente atrás do passado acaba tropeçando nas próprias pernas. E antes que o escorregão o fizesse cair no ridículo, fui tomada pelos braços pelo homem desconhecido do sussurro, que me beijou antes que o outro me alcançasse, antes mesmo que eu pudesse piscar os olhos. Aí percebi que já tinha me despedido do passado fazia tempo. E que o presente é sempre breve. Tão breve quanto um beijo roubado.

4 comentários:

  1. O presente é breve, o passado, um visitante sem hora marcada: o futuro nunca chegou.

    Um brinde ao hoje, cigana!

    Beijo

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  2. Você escreve como moura. Moureja as palavras. O último parágrafo deste texto é um primor. Um beijo

    CR

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  3. Blog legal.. quando der visita o Ecos (WWW.ECOSDOTELECOTECO.BLOGSPOT.COM) . Sucesso e paz...

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  4. "Aí percebi que já tinha me despedido do passado fazia tempo. E que o presente é sempre breve. Tão breve quanto um beijo roubado. "


    a vida!

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