sábado, 17 de abril de 2010

A chaminé do tempo



Hoje acordei triste. Fiquei na cama. Dormi e continuei triste. Todas as manhãs têm sido de tal maneira, como se fosse uma superfície de luz onde repouso meus sonhos. As tardes nunca chegam, nunca terminam, nunca ficam. As vontades trêmulas me impedem de sair do quarto e da casa. Já não consigo ir trabalhar, me cansa a ideia de ter ideias, reconforto-me em planos. Reconsidero certezas e admito dúvidas, pois já não quero ser quem deveria, porque me permito um suicídio moral. De nada adianta meu ofício, estou desiludida com tais obrigações. Os passarinhos contornam o tempo. As nuvens rabiscam o chão. Os ventos sopram os passarinhos que contornam as nuvens que rabiscam o tempo. E eu permaneço muda dentro de mim. Não quero continuar a esperar, espero. Mas não fazer nada é diferente de esperar.


O mundo corre em pistas lambuzadas de óleo. Eu me escorrego pelas curvas. Não há lugar menor que eu. As pessoas atravessam com suas bengalas tristes e dos esgotos saem o cheiro do chão. Debaixo das galerias, a água é suja. Mas as nuvens alcançam meus sonhos. No chão. Se do meu ventre sairão vidas, não vejo, mas percebo que sou a vida dentro de tantas outras. Sou quase uma bengala triste, porque encontram em mim o apoio do mundo. O mesmo que derrapa em curvas lambuzadas de esgoto.



Abrir as janelas para entrar o cheiro de mofo. Lembro das tardes nos campos. Não tinha sol, mas calor havia. As palmas das mãos espalhadas pela terra vermelha, deixando que entre os dedos finos e compridos escapassem a lama da chuva de outro dia. Não tinha sol, mas luz havia. E só quando subia a árvore do quintal vizinho conseguia ver meus sonhos. E mesmo de longe era possível enxergá-los, repousados sob uma superfície de sol, que não aparecia nunca, mas só quando não havia calor nem luz. Todas as manhãs eram dessa maneira, assim como a tristeza que me dilacerou as certezas por causa de outras certezas, que, agora, eram dúvidas. Pausa. Porque esperar é mais do que não fazer nada.



E lembro das folhas caídas na varanda da casa. Do cheiro de café misturado com o bafo do fogão: do cheiro da lenha crua. E lembro de quando tive um sonho. De quando acordei. Triste. Quando escolhi uma profissão. Triste. Lembrava das tardes que sentava à beira da porta, com os pés descalços encostados dois degraus abaixo, para dar a impressão, que, mesmo sentada, sentia-me maior. Sempre fui maior quando olhava para frente, mesmo quando não estava debruçada sobre os balaústres da varanda imensa dos fundos da casa. A chaminé não funcionava em dias de sol. Só quando fazia frio. É assim que me sinto: uma lareira abandonada.

4 comentários:

  1. Acho que a única inverdade de suas palavras é afirmar que te "cansa a ideia de ter ideias". Sem vontade de ideias jamais escreveria as sutilezas aqui apresentadas.

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  2. "Mas não fazer nada é diferente de esperar."

    Oi, Carmen. Como vai? Não desista de si, a mudança começa dentro de nós.

    Bjs

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  3. "Reconsidero certezas e admito dúvidas, pois já não quero ser quem deveria, porque me permito um suicídio moral. De nada adianta meu ofício, estou desiludida com tais obrigações."
    admirável!

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